A ARTE DE RENASCER
Atualizado: 1 de jan. de 2024
Hoje acordei ontem.
Acordei no fim dos 1970 onde dizem que nasci. Desse tempo guardo meia dúzia de fragmentos, tipo vídeo do TikTok: Curto, num eterno looping e que a cada nova vez que revejo vai ficando menos engraçado, emocionante ou real. Lembro de uma senhora nordestina ajoelhada na porta de sua casa enquanto orava descontroladamente para que um Satélite norte-americano não caísse sobre sua casa (ela orava e convocava as filhas que, mais assustadas com a mãe do que com que fosse cair dos céus, não tardaram em comparecer); Lembro do cheiro de tacos encerados da casa da Tia Maria, uma vizinha da época que eu considerava tia por ela ser preta como minha avó materna (até hoje estranho a estranha branquitude da minha família paterna); Lembro de natais e de uma boneca indígena (mas do tipo Apache, de faroestes de filmes antigos) com o cabelo mais liso que eu tinha segurado na vida e que ganhei de minha avó materna; Lembro de “Os Trapalhões”, de cheiro de pipoca e do vozeria das salas de cinema: Os filmes tornaram-se meus primeiros amores nesse mundo. Em algum momento do qual não recordo, em algum momento por lá, morri.
E nunca mais fui o mesmo.
Hoje acordei ontem.
A década de 1980 na minha bolha não foi assim tão colorida e loucamente divertida como nos filmes, talvez, como na casa do vizinho. Foi uma década de dor. Foi quando comecei a entender o que era Rejeição; Foi quando conheci o bullying; Foi quando conheci a violência (fui abusado aos 9 anos de idade). Foi quando conheci o abandono e a solidão. A música Pop (com sua felicidade fabricada e contagiante, como uma droga) me salvou. Era nela que eu encontrava alegria (aí sim, uma que só foi possível sentir nos anos 1980), assim como nas novelas e nos filmes. Enquanto meus colegas de rua ou do colégio refugiavam-se uns com os outros, socializando-se (com o que isso tinha de bom ou de ruim), eu preferia a companhia dos filmes! Na tela do cinema e da tv ninguém me chamava de “viadinho” ou “rolha de poço”, nenhum amigo fingia me chamar para brincar apenas para me atrair para uma emboscada com mais outros 2 colegas para simplesmente me bater, tendo como único motivo o poder de poder ser cruel. Sem falar que nos filmes, por lá, ainda existiam os finais felizes. Sem que eu percebesse a Arte tornava-se a minha Catedral, meu Ijexá, minha Sinagoga, minha liturgia, minha droga alucinógena, meu refúgio e prisão. Morri.
E nunca mais fui o mesmo.
Fênix Negra, da Marvel.
Hoje acordei ontem.
Apesar de todo o ruído, raiva, blusa xadrez de flanela e melancolia, apesar de todo grunge, de Nirvana, Smashing Pumpinks e Pearl Jam, foi na década de 1990 que aprendi a sorrir (e fazer sorrir). O humor fazia com que as pessoas esquecessem que eu era gordo e gay, abria portas, abria abraços. Foi a década dos amores platônicos (que me faziam sofrer como se fossem reais, diga-se de passagem) e de muitas, MUITAS, punhetas. Foi a década que oficialmente me apresentou à Madonna (que sem saber ajudaria a ampliar minha percepção artística e me influenciaria por décadas) e que me traria os amigos mais valiosos que eu teria na Vida. Dois deles ficaria na minha vida mais 30 anos, até hoje na verdade. Foi nessa década também que “saí do armário” e me assumi como Artista, algo embaraçoso de se assumir até hoje dentro de uma família carioca, suburbana, preta e pobre. Morri também aqui.
E nunca mais fui o mesmo.
Hoje acordei ontem.
Os 2000 foram uma década pós-apocalíptica (AIDS, Guerra no Golfo, 11 de Setembro), de disvirgindade e dança. Ah, como eu dancei! Dancei com o Teatro durante 12 anos, dancei com amores, dancei e conheci Gerônimo e aprendi a virar a noite e a ser o adolescente que por alguma razão não consegui ser nos 1990. A pista de dança virou minha nova Igreja, meu novo refúgio. E como fugi! Fugi com Britney e Aguilera, Mariah, JLo, Destiny’s Child e Beyoncé. Fuji com tanta gente. Foi onde fiz desafetos, o maior deles: eu mesmo; Foi aqui, nesse capítulo, que minha mãe morreu; Foi aqui que morri também. Como nunca nunca tinha morrido antes. Precisei trocar de nome. Morri ao som de Kylie: ♫♪ Lalala-Lalalalala, Lalala-Lalalala ♫♪.
E nunca, nunca mais fui o mesmo.
Hoje acordei hoje.
Renascido. Renascer não é menos dolorido que nascer. A diferença está no fato de que da mesma forma que jamais esqueceremos o renascimento, jamais lembraremos da experiência do que foi o nascer pela primeira vez. Aliás, estudiosos dizem que esquecer é fundamental para sobreviver. Segundo o pioneiro do Estudo da Memória (1800), o alemão Herman Ebbinghaus, quando nascemos praticamente todas as conexões de nosso cérebro estão conectadas, é como se estivéssemos sob efeito da melhor cocaína do planeta, hiperativos e hiperatentos o tempo inteiro, "Ligados" 24 horas por dia. Da mesma forma que nesses momentos precisamos parar um tempo, respirar fundo, pensar em besteira, como recém-nascidos, para sobrevivermos, precisamos aprender rápido a desconectar, "Adormecer" determinados setores de nosso cérebro. Nossa primeira lição no mundo então é a aprender a esquecer, num esquema, segundo o Ebbinghaus, de "poda", ou seja,
"...Desfazer-se de muitas destas conexões, como se estivéssemos cortando uma árvore para que ela cresça mais saudável."
Renascer é isso. Aprender a deixar todas as folhas irem embora até parecer que a vida não habita mais em você, como se estivéssemos secos, mortos, e então, num dia de primavera qualquer, voltar a "misteriosamente" florescer, como se ali o abandono e a morte jamais tivessem tido morada.
Hoje acordei hoje.
Estou vivo.
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