EM DEFESA DO "ARLEQUIM DOURADO"
Por Caesar Moura
19/09/2024
Foi na Idade Média, onde ler e escrever era para pouquíssimos (os eruditos, na sua maioria, líderes religiosos) que começou a se popularizar nas classes mais populares o adjetivo - depreciativo - "Pedante", ou aquela pessoa que adora falar difícil só para parecer melhor que os outros. Engana-se quem confunde baixa renda e pobreza com falta de orgulho e dignidade: Algumas vezes é tudo que se tem no prato a noite para "comer", então pode faltar alcatra, mas não falta orgulho na Classe pobre. Por isso seu desprezo histórico pela erudição que veem como uma espécie de inimiga que desqualifica sua força de trabalho, os humilha e menospreza.
Ser pedante no baixo clero era tão desagradável como ser pedante na classe média e periferia modernas. Só que hoje o chamamos de outros nomes.
Graças ao neologismo (fenômeno linguístico que ocorre de tempos em tempos onde palavras mudam de significado, sentido), quando chegamos na Era Industrial e com a popularização da discussão sobre diferenças de classes, pedante foi perdendo força e surge o "elitista", o integrante da classe média ou pobre que fantasia fazer parte da Elite, defendendo valores do opressor enquanto oprimido, ou seja, um outro jeito de nomear pessoas que "comiam arroz, mas queriam arrotar caviar” que “queriam ser melhor que as outras”.
As décadas de 1960+1970 passam e deixam seu legado de luta, resistência e progresso. O movimento da Contracultura dissemina idéias de combate ao Status Quo, de que quebra de padrões preserva a pureza da natureza do indivíduo, a pureza da natureza criativa: Finalmente "Ser do Contra" era cool. Por tudo isso chegamos em 1980 e passamos a chamar os elitizados por algo, digamos, mas empático: de os "Alternativos". Alternativos eram aqueles que geralmente tinham acesso prévio a importantes produtos artísticos (como aquele vinil que só seria lançado no Brasil 3 meses depois, mas que ele já ouviu “na casa do tio que comprava produtos importados”); Alternativos eram aqueles que eram fãs há anos de bandas que ninguém nunca, jamais ouviu na vida; Alternativos eram aqueles que só andavam de preto e pintura andrógena no rosto (mas detestavam rótulos, exceto o rótulo de alternativo, claro!); Alternativo era o que detestava assistir filme dublado por “tirar a emoção presente na língua original”; Alternativo era aquele que não fazia a menor idéia do nome do grupo de axé que era número 1 nas paradas do país, mas sabia recitar a lista completa dos livros mais vendidos do New York Times.
Ufa! Mas durou pouco…
Nos 2000 decidem migrar o "pedante-elitista-alternativo" para "diferentona". O mundo havia cansado de ser legal com os alternativos. Diferentona era aquela pessoa que fingia não saber o nome de nenhum BBB ou da A Fazenda só pra fingir que é "chic", só para ser do contra, só para dizer “que é melhor que os outros”.
Curioso como, mesmo já na Era da Informação, ter “informação demais”, “saber demais”, continua sendo uma ameaça nas Classes mais pobres e principalmente na Classe média..
Atualmente, graças ao comportamento dissimulado - que se perdia diversas vezes no personagem do “humilde, matuto, sincero”, pesando a mão - do vencedor da última edição do reality show mais popular do país, o Big Brother Brasil, um novo update foi feito no adjetivo que migrou seu significado de "Pedante-Elitista-Alternativo-Diferentona" para "Alecrim Dourado”.
Arlequim Dourado, originalmente, é o personagem protagonista de uma canção da popular animação infantil conhecida no Brasil por “Galinha Pintadinha”. Na canção, educativa e para crianças, se explica algumas das características - como a auto-suficiência - que faz do Alecrim a “planta perfeita”. Rapidamente a coisa toda virou um meme para adultos que transformou o nome do personagem num adjetivo pejorativo para quem se acha perfeito, único, diferentona, de gostos especiais. Em outras palavras, para quem “se acha melhor do que os outros”.
E é aqui que chegamos no ponto central da questão: Já reparou como “se achar melhor que os outros” é o padrão no julgamento social há séculos? Quer dizer, quando achamos que alguém está querendo ser “melhor que os outros”, na verdade, “melhor que a gente”, estamos na realidade assumindo que podemos parecer inferiores à elas, que elas tem esse poder, esse poder de nos fazer sentir menores.
Por exemplo, se alguém que sabe mais de matemática que você age como se soubesse mais de matemática que você, a verdade absoluta dela saber mais de matemática que você deixa imediatamente de ser relevante e é substituída pela informação de que a postura daquele indivíduo lhe causa um desconfortável sentimento de inferioridade
E aí o problema então é de quem?
Dizer sinceramente que não gosto de algo popular na verdade faz de mim só mais um imbecil que fala mal até do que não conhece só "para aparecer”? (Parecer “melhor que os outros”?) Me parece raso, ressentido, pessoal.
Não tenho a menor intenção aqui de defender o "pedante" (que ao invés de compartilhar seu conhecimento faz dele ferramenta da arrogância); ou o “elitista" (um traitor de sua própria origem, sua própria classe); ou o “alternativo" (que se afagou em sua própria vaidade); ou muito menos a “diferentona" (a eterna burra, já que antes de ouvir do que se trata, já discorda), mas defendo o Arlequim Dourado (não o do BBB, mas o conceito do adjetivo! Rs) cuja a crítica - com um “Q" de pedante e elitista - advém da natureza autocrítica do indivíduo na sua busca por identidade, por construção das particularidades de sua personalidade, na sua busca legítima por ser Único.
Dia desses revi um documentário sobre a Segunda Guerra "Hittler, Uma Carreira" (1977) e como sempre, num determinado frame do doc me pego hipnotizado por um senhor que, no meio de uma comício gigantesco dos nazistas, recusa-se a aplaudir o discurso do ditador. Veja bem, um único homem no meio de uma multidão nazista negando-se a aplaudir o nazismo: Seria ele o primeiro Arlequim Dourado da história?
I don't think so...
Num Brasil que substituiu a Diversidade pela Representatividade (abrindo espaço para a extrema polarização que vivemos), onde só há a possibilidade de ser Gado ou Alecrim, prefiro ser Alecrim Dourado.
Comments